Foto: Reuters / Sérgio Moraes

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Leitura obrigatória sobre as drogas: Uma visão policial sobre política de drogas



Tom Lloyd *
Artigo exclusivo para o informativo mensal "InterCÂMBIO".


Por que um ex-comissário de polícia do Reino Unido (Chief Constable) viajaria à América Latina para discutir uma mudança no modo de aplicação da lei de drogas? Porque em mais de 30 anos de serviço patrulhando o centro de Londres do posto mais alto, como comissário de polícia, cheguei à conclusão inevitável de que nossa abordagem atual é falha.

Apesar de todo o dinheiro e esforço investido na chamada guerra às drogas, a propagação inexorável das drogas e os danos que as acompanham é um poderoso testemunho do fracasso. O que estamos fazendo agora não só é muito caro e com o foco errado, mas contraproducente e prejudicial.

Os danos causados pelo mercado de drogas ilegais espalharam-se por todo o mundo, mas em nenhum lugar mais do que na América Latina. Muitas vidas são afetadas pela droga, não só para usuários, mas para suas famílias, e as consequências são terríveis. O tráfico de drogas é gerenciado por criminosos cruéis que matam, mutilam e corrompem para manter seus lucros obscenos, além de provocar medo generalizado em cidadãos comuns e comunidades inteiras que, com razão, temem por sua segurança.

Temos de fazer todo o possível para minimizar esses danos, mas também temos de reconhecer as falhas das políticas atuais e considerar novas formas no futuro. Morte, doença, vício e crime prosperam em mercados ilegais, em que não existe controle de qualidade, e faz com que usuários evitem o tratamento e cometam crimes para financiar seu vício. Traficantes aumentam seus lucros visando a próxima geração de crianças, as quais não recebem proteção alguma desse mercado.

Se os governos, a polícia e a sociedade civil trabalharem em conjunto para tratar e não punir os usuários, podemos reduzir os danos, reduzir a criminalidade, apoiar a recuperação e reabilitação. Gostaríamos também de liberar mais recursos para enfrentar os verdadeiros criminosos, os grandes traficantes.

Durante minha carreira, prendi minha cota de usuários de drogas, além de comandar e supervisionar diversas operações antidrogas. Lembro-me de uma operação de grande sucesso que tinha como alvo mais de 100 traficantes. Ela foi considerada um grande sucesso por políticos locais e nacionais, como qualquer grande apreensão de drogas é celebrada como prova do sucesso da guerra às drogas.

No entanto, todos os traficantes, muito previsivelmente, já estavam de volta às ruas em uma questão de dias. Se o sucesso for medido pelo volume de prisões e drogas apreendidas, poderia-se afirmar que a polícia, nesse caso, foi incrivelmente bem-sucedida. No entanto, se julgarmos o sucesso em termos de contenção de mercado e redução de danos, o resultado é bastante diferente.

Tudo parecia tão sem sentido. O que estávamos conseguindo com tudo isso? A porta giratória entusiasta da Justiça Penal recolheu e cuspiu usuários e traficantes, muitas vezes tão dependentes quanto eles, para serem julgados novamente. Jovens, homens e mulheres, presos por pouco mais do que curiosidade juvenil, tiveram suas vidas manchadas para sempre por uma condenação penal.

Nenhum lugar do Reino Unido está livre das drogas ou da criminalidade associada à epidemia. Os criminosos continuam a ter enormes lucros, corroendo e corrompendo a vida pública e privada. Eles têm como alvo a nova geração de crianças e criar viciados que são negligenciados, adoecem e morrem desnecessariamente.

As autoridades policiais têm investido recursos significativos ao longo de décadas para tentar reduzir a dimensão dos mercados de drogas - investigando operações de tráfico, apreendendo as remessas de drogas, perturbando os mercados locais de drogas, destruindo plantaçõs e prendendo usuários. Apesar dos muitos exemplos de sucesso operacional, estes esforços não produziram a erradicação ou uma redução significativa e sustentada do mercado ilícito.

De fato, nas últimas décadas assistimos a um aumento enorme no mercado de drogas, com seus grandes lucros indo para quadrilhas criminosas, associadas à corrupção, violência, e ao financiamento do terrorismo. Há mortes e doenças evitáveis aos usuários, muitos jovens recebendo condenações penais que destroem suas vidas. As nossas prisões estão tão cheias que não podemos reabilitá-los.

Administradores e estrategistas voltam cada vez mais sua atenção à forma em como os esforços de aplicação da lei podem ser adaptados para ter uma ação com melhor custo-benefício, cujos resultados causam menos danos para usuários, comunidades e para os próprios policiais.

Mais recentemente, venho trabalhando em outros países e os problemas que existem no mundo inteiro são conhecidos no mais alto nível, com muitos reconhecendo o quão nocivas são consequências não-intencionais da abordagem atual. Um enorme mercado criminoso (com enormes incentivos financeiros) foi criado usando a corrupção e a violência para manter seus enormes lucros.

Esforços para destruir plantações destroem somente meios de subsistência de camponeses e o ambiente, enquanto os campos de papoula e as plantas de coca são cultivadas em outros lugares, com adaptação dos produtores para atender à sua demanda. O incentivo a outras culturas é inútil se a procura de drogas continua.

Nossos limitados recursos são direcionados para essa guerra nociva, enquanto a saúde pública, que é claramente o primeiro lugar do controle de drogas, continua a ser a pobre irmã caçula. Prevenção e tratamento, com certeza, deveriam vir em primeiro lugar.

E os usuários são excluídos e marginalizados da sociedade, marcados por esse estigma e, muitas vezes incapazes de encontrar o tratamento, mesmo quando estão dispostos a fazê-lo. Uma em cada três novas infecções por HIV fora da África é resultado do uso inseguro de drogas injetáveis. A menos que essas consequências sejam encaradas, nós continuaremos a ser cativados pelos paradoxos do problema das drogas.

Este é um problema global que prejudica pessoas comuns no mundo todo, exatamente o tipo de pessoas a quem eu dediquei a minha vida profissional para servir e ajudar. Entrei para o serviço policial para ajudar as pessoas e não para contribuir para as suas dificuldades. Se o seu filho for encontrado em posse de drogas, você quer que ele seja preso, acusado e condenado (com todo o estigma que isso implica) ou aconselhado, apoiado e, se necessário, reabilitado? Todo usuário de drogas é filho de alguém e, infelizmente, muitas vezes, vítima de abuso emocional, físico e sexual.

Há aqueles que argumentam que a solução é os governos controlarem e regularem a produção, distribuição e fornecimento de drogas atualmente ilegais, a fim de minimizar os danos aos usuários, reduzir custos e eliminar os lucros do crime organizado. Eles podem estar certos, mas não é o meu argumento. Com a minha experiência na polícia reconheço, infelizmente, a necessidade de continuar a luta contra o crime organizado em todas as suas formas.

Claro que não é fácil e é preciso muita habilidade, determinação e investimento para alcançar o sucesso. Se estamos desperdiçando recursos para processar e prender os usuários e traficantes de baixo nível, estamos reduzindo seriamente a nossa capacidade de enfrentar os grandes traficantes e chefões do crime organizado, não importando quantos usuários prendamos. Fazemos isso há décadas e eles continuam a ter lucros obscenos.

Agora tenho a oportunidade, através do projeto IDPC Drug Law Enforcement, que tenho o privilégio de conduzir, de tentar incentivar os funcionários responsáveis pela aplicação da lei a mudarem sua abordagem. Este projeto procura formas de ajudar os oficiais a elaborar novas estratégias e táticas para que os recursos possam ser direcionados a minimizar o poder e o alcance da criminalidade organizada, reduzir a violência associada aos mercados de drogas e apoiar os esforços para fornecer o tratamento e redução de danos serviços aos usuários de drogas.

Nós argumentamos que a legitimidade das leis de drogas está sendo ameaçada por estes problemas à medida que o público perde a confiança na abordagem atual. Desafiamos as pessoas a considerar a conveniência e eficácia da lei penal a ser utilizada para lidar com usuários de drogas, particularmente os jovens, e argumentamos que a relativa ineficácia das atuais atividades de controle de drogas é um forte motivo para considerar mudanças na abordagem. Sugerimos também que novos objetivos sejam desenvolvidos para nos concentrarmos mais em reduzir as consequências prejudiciais do mercado das drogas, e não apenas em sua escala.

Podemos trabalhar juntos para melhorar a compreensão mútua, podemos desenvolver parcerias para atingir objetivos comuns que podem aproveitar as oportunidades para se tornarem mais eficientes e eficazes na luta contra a grave criminalidade organizada. As forças policiais podem desempenhar o seu papel no sentido de facilitar o atendimento aos usuários em vez de frustrar, muitas vezes, inadvertidamente, os esforços para dar-lhes o apoio que tanto necessitam.

Os problemas associados a esta questão no Reino Unido - morte, doença, crime, o vício e a corrupção - são suficientemente graves, mas eu reconheço que há milhares, senão milhões de pessoas em muitos países da América Latina que sofrem muito mais. Esta não é uma competição de quem está sofrendo mais, mas há uma verdadeira urgência das autoridades em dizer o que devemos mudar no que estamos fazendo, e enquanto isso não acontecer, os problemas só vão piorar.

Nós podemos fazer as coisas de forma diferente. Em Boston, na década de 1990, a polícia conseguiu concentrar os esforços em reduzir o número de assassinatos como uma prioridade maior do que o prosseguimento dos esforços inúteis para reduzir a dimensão do mercado ilegal (de drogas). Em Portugal, a despenalização da posse de todas as drogas para uso pessoal, desde 2001, desbloqueou um tribunal abarrotado e um sistema prisional superlotado, e as avaliações desta abordagem têm mostrado um impacto global positivo sobre as taxas de reincidência e de reinserção social de usuários de drogas além de uma economia significativa para o governo.

O povo suíço aprovou votou por dois terços no ano passado a ratificação do seu bem-sucedido programa de receita de heroína como política oficial do governo. Durante 15 anos, a heroína foi prescrita em clínicas especiais, sob condições controladas, resultando em menos criminalidade, mortes e doenças e menor índice de novos usuários. Após esta iniciativa, a heroína já não é legal, no sentido de descolada. É importante porque os indivíduos, previamente desesperados para conseguir as drogas, vão conseguir manter um emprego e uma vida familiar normal. Esta é apenas UMA boa notícia, mas temos de avançar mais.

Eu tive uma abordagem diferente na cidade de East Anglia, onde oferecíamos uma escolha entre tratamento e detenção de usuários reincidentes de drogas. Eles quase sempre escolhem o tratamento, e os detetives foram surpreendidos ao saber que isso não só economizou tempo e recursos preciosos, como também foi a maneira mais eficaz de combater o roubo que já haviam visto.

Nós pensamos e agimos de formas novas e obtivemos melhores resultados para todos. Eu tenho certeza que existem muitos outros exemplos de abordagens inovadoras para a resolução deste problema que precisam ser desenvolvidas, compartilhadas e implementadas o mais amplamente possível.

Prender usuários é equivocado e contraproducente; processar revendedores, sem abordar a demanda ou os seus lucros não funciona. Se o dinheiro desperdiçado em desinformação, baixo nível de execução e condenação fosse gasto em resolver as causas subjacentes, tantas vidas afetadas pela droga e o crime poderiam ter sido diferentes.

Recentemente, líderes políticos e outras autoridades da América Latina têm se levantado para defender a mudança, os governos estão considerando a descriminalização como um caminho a ser seguido. Isso é muito encorajador se conduz a uma ação nacional e internacional conjunta e ao desenvolvimento e implementação de soluções duradouras, eficazes e humanas.

Sabemos que temos de mudar e sabemos também que os policiais gostam de fazer as coisas acontecerem. Espero que o meu conhecimento e experiência possam, de alguma maneira, ajudar a trazer mudanças benéficas. Este é o momento para os líderes da polícia em todo o mundo desafiarem o status quo e concentrar os recursos nos criminosos organizados, não nos usuários, e se concentrar na redução de danos, não em um sonho idealizado de uma sociedade livre de drogas.

 
Postado por Sgt Barbosa no Blog "Segurança, Cidadania e Dignidade"

Fonte: http://segurancacidadaniaedignidade.blogspot.com/2010/05/uma-visao-policial-sobre-politica-de.html

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