Foto: Reuters / Sérgio Moraes

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Segurança pública: três visões, uma pasta

Marina Lemle 09/04/2010 - 03:00.

A porta aberta convidava a entrar na sala lotada. Do corredor já se percebia que valia a pena assitir ao debate de pé mesmo. Juntos na mesa estavam quatro referências brasileiras em segurança pública: o coronel José Vicente da Silva, da Polícia Militar de São Paulo, o antropólogo Luiz Eduardo Soares, o historiador Ricardo Balestreri e, como mediador, o diretor do Instituto Sou da Paz, Denis Mizne.

Além da verve afiada, os três palestrantes têm em comum já terem chefiado a Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp). O debate entre os dois ex-secretários – José Vicente e Soares - e o atual - Balestreri - foi um dos eventos mais concorridos do IV Encontro Anual do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, realizado em março, em São Paulo.

Apesar das boas intenções reconhecidas mutuamente, os especialistas não falam em uníssono. Enquanto Soares e Balestreri alinham seus discursos na ênfase à prevenção da violência, o coronel defende o foco na repressão. “Foi um bom choque de ideias", ironizou o militar, que esteve à frente da Senasp de julho a dezembro de 2002. Ele diverge dos cientistas sociais de que o esforço principal para reduzir a violência no país deva ser um conjunto de atividades na área social. A seu ver, essa missão cabe principalmente à pasta da Educação.

"Quem se volta para a segurança pública deve entender de forma fria os dados da realidade e dar respostas eficientes aos criminosos", afirmou. O coronel considera o crime uma opção, e não uma falta de opção. "Por que 97% dos moradores de favela trabalham honestamente?", questionou.

Segundo ele, a prioridade no combate ao crime deve ser o investimento em inteligência e na qualificação do policial. "É preciso ter um sistema que informe os pontos de incidência criminal para que se possa mandar para estes locais um policiamento inteligente, com policiais bem preparados, que queiram fazer bem feito. Isso expande a capacidade de resposta", explicou.
Muita bílis, poucos neurônios
O atual secretário, Ricardo Balestreri, fez duras críticas à “má gestão histórica da segurança pública”, que é feita pelos estados. Ele classificou como “um desastre” a gestão contemporânea, que, segundo ele, investe muito mal um total de mais de R$ 20 bilhões por ano. “Segue-se o senso comum, que quer a impressão de que algo vai mudar, por exemplo, comprando viaturas”, disse. Para ele, o problema central da gestão da segurança pelos estados é a substituição do pensamento estratégico pelo tático-operacional.

“Estão correndo atrás do próprio rabo. O pensamento tático operacional só tem valor se estiver no rabo do pensamento estratégico. Nos últimos 40 anos, a segurança pública foi feita com o fígado e a bílis, e não com o cérebro e os neurônios. Não se faz gestão sistêmica, se aplaca a revolta popular”, afirmou. O secretário acrescentou que o 190 é “um importante serviço de consolo da vítima”.
Fuzil, complexo fálico
Balestreri, que comanda a pasta desde julho de 2008, criticou ainda “a tese estúpida da equivalência bélica”. “Os bandidos não têm senso moral, mas nós temos obrigação de ter. A insistência por fuzil é um problema de complexo fálico”, alfinetou. Segundo o secretário, a Senasp não gasta mais com armas de guerra, como o fuzil 762, cujo projétil alcança quatro quilômetros de distância. Para ele, o objetivo é reduzir a letalidade.

Outro caminho nessa direção, segundo Balestreri, é a polícia de proximidade. “Quando falava disso anos atrás, era tratado como romântico. Quando disse que a polícia do Rio era espetaculosa, fui tratado com deboche. Hoje, o Rio resolveu testar e agora há mais de 150 mil pessoas vivendo em áreas pacificadas. Quando há pouco efetivo, a polícia se nutre da população com policiamento comunitário”, disse.

Sobre a Polícia Civil, Balestreri lamentou que ela tenha sido “cartorializada”. “A Polícia Civil foi sequestrada de suas funções mais nobres, investigativas. As carceragens são uma consequência dessa cartorialização”, afirmou.

Reforma para o ciclo completo de polícia

O professor Luiz Eduardo Soares, que comandou a pasta entre janeiro e outubro de 2003, defendeu grandes reformas no atual modelo de polícia e propôs a integração das polícias Civil e Militar, de forma que o trabalho policial possa ter o chamado “ciclo completo”. De acordo com Soares, as estruturas organizacionais atuais se contrapõem à eficiência e a rigidez hierárquica colide com a flexibilidade criativa da autonomia na ponta, que precisa ser respeitada.

“Descentralização é chave. O modelo militar só faz sentido no Exército e não combina com o pronto emprego da força. É preciso combinar hierarquia com descentralização e trabalhar a integração repensando carreira e valorização profissional”, disse.

Segundo ele, foi comprovado em pesquisa acadêmica que 70% dos policiais querem mudanças. “Os policiais não aguentam mais a fratura, a dicotomia. Quem fala em mudança está sintonizado com a grande maioria”, garantiu.

Soares falou ainda sobre a importância do município na segurança pública e criticou o “absurdo silêncio constitucional” sobre o tema. “A Guarda Municipal está no limbo, num espaço híbrido”, afirmou. Ele citou também como pontos fundamentais a serem desenvolvidos a gestão do conhecimento, a produção de dados, a valorização da perícia, o controle externo da polícia, a transparência, a participação da sociedade na segurança pública, a articulação do sistema de justiça criminal e a questão carcerária.

Mais presos e mais prisões

O sistema carcerário é outro ponto de discórdia entre os secretários civis e o militar. Para o coronel José Vicente, é necessária e urgente a construção de mais prisões, para que a polícia possa prender mais criminosos. Pelos seus cálculos, levando em conta ser necessário um presídio para cada 500 presos, deveriam ser construídos 80 presídios por ano nos próximos cinco anos, já que faltam 400 para abrigar os 200 mil presos sem vaga no Brasil.

Segundo ele, durante cinco anos, o estado de São Paulo chegou a construir um presídio por mês e hoje tem o dobro da taxa de presos que o Rio. "São Paulo prende muito e mata pouco, enquanto no Rio é o contrário. São Paulo prende 120 mil pessoas por ano, o Rio 15 mil", completou.

Já Soares e Balestreri questionam abertamente o excesso de prisões feitas no Brasil, principalmente por tráfico de drogas, que lotam o sistema carcerário de presos primários e pegos em flagrante desarmados. Segundo Balestreri, a prisão tem um caráter “criminógeno”, sendo definida pelos próprios presos como uma "faculdade de crime".

O atual secretário Nacional de Segurança defende a despenalização do pequeno traficante. Já Luiz Eduardo Soares vai mais longe: é a favor da legalização das drogas para que elas deixem de ser matéria de polícia, prisão e guerra e passem a ser questão de saúde pública, educação, cultura e informação.

Necessidade de qualificação é consenso
O consenso de que a sociedade precisa de uma estrutura policial de qualidade, com qualificação profissional e sem desvios e letalidade, foi enfatizado pelo coronel José Vicente. Ele contou que a Polícia Militar de São Paulo aumentou de seis meses para dois anos o período de formação policial.

"A polícia é um grande instrumento, uma conquista do século XIX. Em qualquer contexto social os delitos vão acontecer. Enquanto a sociedade não resolver seus fatores criminógenos, serão necessários instrumentos para contenção, como polícia e prisões, para o processo de civilização. Não adianta subestimar e enfraquecer a polícia, ela precisa ter um papel central. Se não houver recursos nem salários adequados, ela controlará cada vez menos o crime", concluiu.

Balestreri contou que hoje a Senasp investe mais de 60% do seu orçamento em formação de capital humano. Ele disse que luta pelo estabelecimento de um piso salarial nacional, mas ainda sofre resistência dos estados.
Fonte: Comunidade Segura

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